A lei da
sobrevivência me ensinou a aceitar muita coisa.
Minha
adolescência foi de tempos difíceis, mas, dentro do possível, agradáveis.
Faltava
muita coisa e ao mesmo tempo não faltava nada. O que faltava era compensado com
doses de criatividade. Uma coisa sempre sobrou, o respeito pelo outro, a
educação.
Do lado
de fora de casa, onde a briga é mais injusta, essa criatividade teve que ser
explorada ao seu máximo. Os adolescentes são cruéis quando querem. Comigo não
foi diferente.
Como
sempre fui atento ao que estava a minha volta, pouco me incomodava o que vinha
de fora. Passar por idiota, às vezes, é mais sensato do que ser esperto.
Dava para
tirar de letra.
Meus pais
se separaram eu tinha uns seis anos. Pouco convivi com meu pai até a
adolescência, quando passei a procurá-lo. Ia ao seu encontro, raramente ele
veio ao meu.
Meu pai
funcionário público, lotado no antigo IAPM, onde exercia cargo de destaque.
Ganhava razoavelmente bem. Conseqüentemente, a pensão que minha mãe recebia,
dava bem para vivermos.
Seu
posicionamento político sempre foi à esquerda. Foi da UNE quando na faculdade,
chegou a se candidatar a vereador, quando morava na Bahia. Por força da função
viajava sempre.
Em 1964,
quando do Golpe Militar, ele se encontrava em Manaus.
Foi
preso, perdeu o emprego. Ficou dois anos detido no Rio de Janeiro. Durante o
período que esteve preso eu o visitava sempre. Como tinha curso superior,
cumpriu seu tempo em um quartel da PM. Após esses dois anos foi julgado e
inocentado. Tentou recuperar seu emprego, mas nunca o conseguiu. Não teve Juiz
com peito suficiente para enfrentar a Ditadura e devolver-lhe o que era de
direito, já que era inocente das acusações.
A partir
de sua demissão, começou nosso calvário. Ficou sem emprego, ficamos sem a
pensão.
Para nos
sustentar, minha mãe, vendia Avon. Imagina, naquela época, alguém sustentando
dois filhos vendendo produtos de beleza.
Faltava
muita coisa menos carinho, dedicação, amor e criatividade.
Vivíamos
em um mundo de classe média alta. Tínhamos padrão de classe média alta. De
repente, tudo acaba.
De volta
lá em cima.
Como um
garoto sem grana vive no meio de gente com dinheiro? Dá seu jeito.
Usa a
calça comprida da irmã mais velha, reformada pela mãe, guarda sua melhor camisa
para o domingo e as festinhas. Daí o meu apelido Camisa.
Lembram? Os
adolescentes são cruéis quando querem?
Nunca me
importei com apelido. Até hoje me chamam por ele. Virou sobrenome.
Essa
enrolação toda tem um objetivo, falar do que está acontecendo agora.
Essa
noite fiquei acordado, durante bom tempo, pensando no que está ocorrendo nas
ruas. Viajei no tempo e me assustei com a semelhança de tempos passados. Muitos
hão de dizer que os tempos são outros, que não existe mais espaço para golpes,
ditaduras. Será? Não sei se minha experiência de adolescente está falando mais
alto, não sei se estou deixando a teoria da conspiração me dominar, mas, o fato
é que me assustou.
A falta
de perspectiva da direita mais radical passar ao poder, a falta de liderança na
oposição, a falta de programa que seduza, pode sim, levar a uma radicalização.
É histórico.
Em 64 a justificativa foi acabar
com a corrupção e eliminar o perigo comunista.
Não
aconteceu nenhuma coisa nem outra.
Pinço,
para ilustrar, trecho de um livro:
“É
fundamental levar em conta o apreço e apego de Geisel à ordem e à hierarquia. A
verdade é que o sistema militar havia perdido o controle sobre o aparelho de
segurança e de informação. Era preciso reprimir a repressão, conter seus
excessos, enquadrá-la na hierarquia e disciplina militar. Impor-lhe a cadeia de
comando. Para ele, a revolução envelhecera, estava na contramão da história.
Mais que isso: desfigurara-se, deteriorara-se. A censura, travando a
fiscalização da imprensa, facilitava a corrupção, inclusive de militares e
ex-militares. Era essa a avaliação de Geisel, segundo o almirante Faria Lima:
"Ele se instalou lá naquele Palácio do antigo Ministério da Agricultura
para trabalhar na organização do seu programa de governo. Na verdade, ele já
estava se preparando há muito tempo. Ele me disse, naquela ocasião que ia fazer
a abertura. E eu disse a ele: 'O senhor acha que é a hora para fazer a
abertura?' Ele me respondeu: 'É. Porque a corrupção nas Forças Armadas está tão
grande, que a única solução para o Brasil é abertura.'" Por outro
lado, a repressão política criara um poder militar paralelo, autônomo,
enfraquecendo os comandos, prejudicando a hierarquia e a disciplina, ameaçando
a ordem dentro das próprias Forças Armadas. A concentração excessiva de poder
no governo, se por um lado significava força, por outro expunha o governante. E
a tão temida ameaça comunista mostrava-se cada vez mais improvável, distante,
descartada.”
História indiscreta da ditadura e
da abertura-Brasil: 1964-1985 - Ronaldo Costa e Couto (1999, págs. 150 a 151), (Editora Record)
Hoje
estão tentando levantar a mesma hipótese do pré-64. Basta olhar os jornais, dar
uma passeada pelas redes sociais que veremos o assanhamento dos radicais.
Provavelmente
dirão que naquela época não havia tanta corrupção quanto hoje. Será? A imprensa
era “cabrestada”, a censura estava em pleno vigor, o medo impedia qualquer
manifestação.
Os
historiadores negam que não houvesse corrupção, Geisel também. Alguns dizem que
foi maior até do que temos hoje. Alguns marcaram essa época. Não importa. Maior
ou menor, nunca deixou de existir.
O
jornalista e escritor J. Carlos de Assis escreveu três livros, em 1984,
mostrando os escândalos desse período. Um deles, “A Chave do Tesouro, anatomia
dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/83”, revela essa corrupção. Alguns
capítulos: Caso Halles, Caso BUC, Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso
UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de
Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso
Delfin, Caso TAA. Cada “caso” é um capítulo.
Minha
grande preocupação é onde iremos chegar.
Os vinte
centavos não são o verdadeiro motivo dessa manifestação. A insatisfação com o
governo, também não.
Tem algo
mais no ar, além dos aviões de carreira.